quarta-feira, 19 de julho de 2023

Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Garotas Iradas (2001), livro com crônicas e inéditos dela. Estava lá me esperando e é melhor ainda que nas minhas lembranças. A origem das bonecas e a maneira como elas aparecem na vida e obra de algumas lésbicas, a partir de quatro exemplos: as bonecas da escritora Djuna Barnes, o bonequinho do piloto de lanchas "Joe" Castairs, as bonecas sádicas do filme Barbarella e a canção Feiticeira, no primeiro disco de Maria Bethânia. É uma bela viagem ao mundo das bonecas em texto longo (cinco páginas do livro) e saboroso. É tudo de Vange Leonel a partir daqui: 






Quem quer brincar de boneca?

Vange Leonel 

Há alguns anos comecei a perceber em mim um interesse especial por bonecas. Não, meus queridos e queridas leitoras, não fui acometida de uma crise regressiva e nem estou perdidamente apaixonada pela Xuxa! Mas lembro bem que há uns 15 anos, mais ou menos, compus com minha banda de hard-rock, o Nau, uma curta canção bem punk onde cantava “odeio boneca, não quero boneca”. A música, mais que afirmar meu desgosto por essas miniaturas de gente, inanimadas, pretendia ser pequeno manifesto “grrrl” para romper com a figura da mulherzinha fofinha, gentil e feminina que gosta de bonecas e é criada para povoar este nosso planetinha. 

Mas o que pensei na época ser ódio transformou-se numa relação de amor. Não que eu tenha saído por aí comprando e colecionando bonecas: continuo não tendo bonecas e, definitivamente, não gosto de brincar com elas. Se bem me lembro, a única boneca de que gostava era uma bem pequenininha e moreninha que minha mãe guardava no alto de um armário, bem fechado. Por que minha mãe a escondia de mim, eu não sei. Só sei que a boneca no armário transformou-se, a certa altura, numa verdadeira obsessão – Freud explica. 

Muitos anos depois, já em 1994 ou 1995, dei uma entrevista à Sui Generis onde falei abertamente sobre a minha homossexualidade saindo do armário (para o público, pois sempre fui transparente na minha vida particular). Nesta entrevista, resolvi também tirar do armário minha velha conhecida boneca e a revista publicou um texto meu que faz parte de um livro ainda inédito. O texto, chamado Minha Boneca era assim: 

Quando eu era criança não costumava brincar de boneca. Eu corria atrás de uma bola e gostava de jogar vários jogos, mas nunca tive carinho especial por um bebê de plástico ou uma filhinha de pano.

Bizarro é o destino. O tempo passou, eu cresci e fui cada vez mais sentindo saudade da boneca que nunca tive. Agora que sou grande e não gosto de ficar sozinha em minha cama escolhi você para ser minha bonequinha.
Em você eu faço carinho enquanto você me faz companhia. Eu te penteio, eu te visto e dispo todinha e você diz pra mim segredos lindos que só eu consigo ouvir. E ainda por cima – só nós sabemos – a gente é super feliz.


Pois foi assim que saí do armário junto com a minha boneca. Depois desse dia meu interesse pelas relações das mulheres em geral – e as lésbicas, em particular – com suas bonecas aumenta a cada dia. 

O que pretendo investigar aqui, rapidamente é a maneira como as bonecas aparecem na vida e na obra de algumas lésbicas, a partir de quatro exemplos: Djuna Barnes, o bonequinho da piloto de lanchas “Joe” Castairs, as bonecas sádicas da heroína Barbarella e a canção “Feiticeira”, gravada no primeiro disco de Maria Bethânia. Mas antes de me estender sobre estes quatro exemplos, vamos saber um pouco sobre a origem das bonecas. 

As primeiras bonecas de que se tem notícia foram encontradas durante escavações no Egito, em tumbas de crianças, e datam, aproximadamente, de dois ou três mil anos antes de Cristo. Alguns experts afirmam que, antes de virar brinquedo de criança, as bonecas eram usadas para fins religiosos. Aquela pequena figura com cara de gente deve ter exercido um fascínio tão grande nas crianças que o objeto, de religioso, passou a ser de uso específico das menininhas, com grande coração e imaginação infinita. O mais curioso é que esta transição de objeto religioso para foco específico da atenção e do carinho das crianças parece ter acontecido no mundo todo e em várias culturas. Desde a Índia até a Europa, do Japão até a Síria, entre os Incas e os índios americanos, pode-se encontrar todo tipo de boneca, sempre querida pelas crianças e sempre envolvida em simbologias e rituais religiosos.

Que fascínio é esse que a boneca exerce nas meninas e que se espalhou pelos quatro cantos do planeta?


A escritora é Djuna Barnes, que em 1936 publicou sua obra-prima Nightwood, inspirada na sua relação conturbada com a escultura Thelma Wood. Djuna e Thelma viveram juntas por quase dez anos e a cada festa de ano-novo elas davam, uma para a outra, uma boneca. Numa noite, após uma briga, Thelma jogou no chão uma das bonecas de porcelana que as duas colecionavam. A boneca se despedaçou e parece que o amor delas também. A força simbólica do ato precipitou a separação definitiva do casal. Não poderia ser de outra maneira já que, em Nightwood, é inegável a força mítica da boneca na relação amorosa das duas. Em certo trecho, Djuna afirma que “quando uma mulher dá (uma boneca) para outra mulher, ela é a vida que elas não podem ter, é a filha sagrada e profana”. Ou quando conta um dia que chegou em casa e viu a amante, bêbada, “parada no meio da sala, em roupas de menino, balançando num pé e noutro, segurando a boneca que ela nos deu – ‘nossa filha’ – alto sobre sua cabeça, como se ela fosse abatê-la”. Não é preciso nem falar, a boneca é jogada ao chão e se quebra, como aconteceu na vida real entre Djuna e Thelma. Mais adiante no livro Djuna Barnes compara o terceiro sexo às bonecas, afirmando que os dois têm algo em comum: “a boneca porque parece viver, mas não tem vida e o terceiro sexo porque tem vida mas se parece com a boneca”. 

Djuna Barnes, portanto, confere à boneca um lugar especial, fazendo com que ela substitua o filho que não pode ter e comparando a boneca à sua namorada andrógina, ressaltando a plasticidade que é própria tanto da boneca como do terceiro sexo. 


Já o piloto de lancha de corridas Marion “Joe” Castairs preferia um bonequinho. Castairs era  contemporânea de Djuna Barnes e na década de 1930 comprou uma ilha no Caribe, onde se estabeleceu até o fim de sua vida. Vestia-se de homem, fabricava e pilotava lanchas de corrida e chegou a namorar a atriz Tallulah Bankhead e a sobrinha de Wilde, Dolly. Castairs não desgrudava de Wadley, um boneco de couro, presente de sua namorada Ruth. Durante uma briga – veja a coincidência com o caso de Djuna – Ruth danificou Wadley e a partir desta data Castairs nunca mais deixou nenhuma namorada ou amante se aproximar de seu boneco. Depois disso, Wadley tornou-se o verdadeiro objeto de amor de Castairs: era seu alter ego, a ele dedicava festas e fazia extensos ensaios fotográficos mostrando Wadley sob todos os ângulos possíveis, em atividades que nem Barbie sonharia. As namoras de Castairs – todas – sentiam ciúmes de Wadley. Mas o tempo passou, Castairs envelheceu e seu boneco Wadley também: seu coro escureceu, a cabeça caiu e o boneco, sessenta anos depois, estava todo remendado de band-aid. Já à beira da morte, um amigo disse a Castairs “você nunca precisou de ninguém” ao que respondeu: “só de Wadley”. Fiel à sua paixão, ela morreu com seu boneco nos braços e assim foi cremada. 

O boneco de Castairs então, não era um substituto para o filho que não podia e não queria ter – como no caso de Djuna – mas uma projeção sua, um alter-ego, a sua própria imagem em miniatura. Para mascarar sua profunda solidão Joe Castairs criou um ser à sua imagem e semelhança, a quem dedicava cuidados e buscava proteção: Castairs cuidava do boneco que cuidava de Castairs. 


Mas nem todas bonecas são tranquilas e confortadoras. Se essas craiaturas inanimadas protegiam e eram protegidas por donas como Barnes e Castairs, o mesmo não podemos dizer das bonequinhas sádicas do filme Barbarella. O filme, estrelado por Jane Fonda, é uma ficção científica kitsh da década de 1960. O encontro da heroína com as pequenas vilãs acontece quando Barbarella pousa sua nave num planeta estranho e encontra lindas bonequinhas com quem trava uma conversa amigável, achando tratar-se de doces e ingênuas criaturas. Para sua surpresa, as bonecas a amarram numa estaca e a atacam, mordendo Barbarella com seus pequenos dentes de metal. A cena, sádica, tem fortes conotações eróticas: Barbarella não consegue disfarçar a dor e o prazer que sente a cada mordida. Esta cena permaneceu como o único resquício lésbico de Barbarella, já que o diretor do filme, Roger Vadim, resolveu excluir da versão oficial as cenas de lesbianismo explícito entre Jane Fonda e Anita Pallenberg, que fazia a imperatriz do mal. 

Mas voltando às bonecas: Barbarella é enganada por seus instintos pois acreditava que todas as bonecas eram, por natureza, boazinhas. De certa maneira, o encontro da heroína com as bonecas sádicas marca a iniciação de Barbarella no mundo lésbico, um mundo onde as bonecas – e as mulheres – não são como se espera que elas sejam. Assim, as bonecas de Barbarella revelariam um outro traço da dinâmica lésbicas-e-suas-bonecas, um aspecto mais sádico no qual a boneca esquisita e “anormal” representa a profunda recusa de uma mulher a pertencer ao mundo da “normalidade”. As bonequinhas sádicas, então, são para aquelas que se recusam ser categorizadas como “boazinhas”, “doces”, “prontas para o lar” e “prontas para o prazer do homem”. 

No entanto, mesmo quando a relação das lésbicas com suas bonecas parecem beirar o sadismo, a afeição e a paixão por suas queridas nunca deixa de existir. Uma amiga minha – lésbica – conta que, quando pequena, gostava de jogar bola com sua boneca Lili. Não que Lili fosse centro-avante: minha amiga fazia a própria Lili de bola e chutava a boneca para lá e para cá. Pode parecer cruel, mas minha amiga diz que não era maldade, mas uma coisa lúdica – e que Lili adorava ser a bola! 


Partindo do lúdico para o lírico, chegamos finalmente numa das mais belas músicas do cancioneiro popular brasileiro, gravada por Maria Bethânia em seu primeiro disco. A música, Feiticeira, de autor desconhecido, conta a história de uma garotinha e sua boneca – Engraçadinha – a quem dorme agarrada todas as noites. Uma madrugada, ao invés da dona ninar Engraçadinha, é a boneca quem faz a menina pegar no sono. A tragédia se dá quando, impossibilitada pelo sono de cuidar de sua bonequinha, a menina acorda com uma surpresa. No último verso, sabemos o destino reservado às duas: 

Despertando deste sono, 
procurando Para tê-la em abraços
Oh! que dor no coração ao vê-la no chão
Separada em mil pedaços. 

Engraçadinha, depois de ninar quem sempre a ninou, fica desprotegida, cai no chão e se quebra. Novamente aqui a questão do cuidar-se e do cuidar do outro se apresenta como algo inexoravelmente ligado às bonecas. O cuidado é maternal quando se trata da boneca de Djuna Barnes e é obsessivo quando falamos de Joe Castairs e seu Wadley. A falta de cuidado das bonequinhas sádicas alerta Barbarella para um mundo diferente e a distração descuidada da menina da canção “Feiticeira” provoca a morte da boneca Engraçadinha. 

Se o mundo masculino – finalmente avalizado pelo pensamento darwiniano – sempre enalteceu a competição, valorizando aqueles que fizeram algo, alcançaram um posto ou conseguiram feitos importantes, o imaginário feminino parece dar uma importância maior ao cuidado – ou à falta dele. Por isso as bonecas, que cuidam de nós assim como nós cuidamos delas, sempre tiveram um lugar especial nos corações e na vida das meninas do mundo inteiro – e isso vale até mesmo para a mais macha das garotas. Portanto, agarre sua bonequinha (mesmo se ela for de carne e osso) e seja muito, mas muito feliz.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A Tropicália lá no inicio em ensaio de moda

 


É uma maravilha esse ensaio de moda da Rhodia com o tema Tropicália, quando ela ainda estava viva - abril de 1968 "tropicalismo" na matéria. As fotos são de José Daloia e cenários de Cyro Del Nero. Redator/es não creditados

"O tropicalismo é nosso. ou Yes, nós temos bananas."

São 17 páginas da Jóia, revista feminina da Bloch editores, a mesma da Manchete. Abre com um manifesto e com muitas imagens e textos/citações ótimas, vai contando a história do movimento, que tem em Gilberto Gil e Caetano Veloso seus líderes. Gil está entre os que posam com as modelos da Rhodia (Mila Moreira é uma delas).Caetano não, mas aparece no índice da revista no famoso apartamento paulistano da Avenida São Luis ("o mais famoso hippie da atualidade brasileira), chamando a matéria

Os que já tinham partido (Carmem Miranda), os astros do passado e os que chegavam: estão todos no ensaio


Quem abre e pilota a "transmissão radiofônica" é Jorge Veiga, que Caetano Veloso homenageia em GilGal do álbum Meu Coco. Carmem Miranda festeja na parede e a bicicleta de Jorge tem bandeirolas do Brasil


E abram alas para Vicente Celestino e o célebre Coração Materno. 
"Agora sim, chegamos à espinafração total": a frase de Oswald de Andrade ("sem cuja colaboração não existiria tropicalismo tão tropicalista assim") abre alas pro elenco de O Rei da Vela do Teatro Oficina - Renato Borghi, Etty Fraser e Otavio Augusto - no cenário da peça.


No bilhar, o cantor João Dias e na parede o retrato de Francisco Alves, o Chico Viola, morto em 1952. Na página ao lado, César Ladeira, "o locutor oficial da Revolução de 32", na cadeira do barbeiro. Na parede do salão, a Santa Ceia e modelos desnudas.


E chega José Lewgoy, o homem mau das comédias da Atlântida, em cenário 
bilhetes de loteria e jogo do Bicho . Na página ao lado, "é moleza de bordo, contrabando do cais": Moreira da Silva, o Kid Morangueira com duas manequins na Rua João Durães, indica a placa


"Me chamo Pixinguinha e moro na rua do mesmo nome, número 23".De terno branco, dois veteranos da música brasileira: Pixinguinha (outro homenageado por Caetano em Gil Gal) e Carlos Galhardo numa serenata às manequins. O retrato de Getúlio Vargas está na parde de Pixinguinha e um anúncio de Circo na de Galhardo. "No apartamento azul do nosso coração a rosa de Istambul em versos do Japão": versos de Cortina de Veludo, sucesso de Carlos Galhardo.



"Tropicalistas de Ipanema, uni-vos" E olha quem chega: Gilberto Gil! E ele comanda a Banda de Ipanema.
Na página ao lado, Estatutos da gafieira: "é prroibido abusar da umbigada, para não prejudicar hoje o bom crioulo de amanhã. Os versos são da canção de Billy Blanco, que Jorge Veiga também gravou. O "destaque" diante do microfone com a manequins é Zeffa, da Escola de Samba Vai-Vai


Tem sertanejo? Tem, sim senhor. E raiz. A dupla Alvarenga e Ranchinho caindo de charme. Na página ao lado, 
o samba de Nelson Cavaquinho (chique chique todo de branco) em cenário religiões de matrizes africanas. "Saravá,"minha" pai"



Já pro final do ensaio, a presença de dois atores: Edmundo Lopes incorpora Getúlio Vargas discursando. O retrato de Getúlio, que já aparecia na página de Pixinguinha,  está aqui no centro do cenário. 
Ao lado, Elisio de Albuquerque, o vilão dom Rafael da novela O Direito de Nascer (1964) representando o Brasil agrícola.


E a "transmissão radiofônica" ensaio de moda termina no ritmo do futebol com o goleiro Caxambu ao lado das manequins: "Alô, alô Caxambu! O locutor que vos fala informa que aqui o sol está a pino desde às sete horas da manhã! A-ten-ção Bra-sil!! Os magiares adentram o tapete verde, envergando suas vistosas jaquetas rubro-anis!"



Aqui, os agradecimentos e créditos do ensaio




terça-feira, 31 de maio de 2022

Selma Egrei vive "muda" em filme com argumento de Benedito Ruy Barbosa

 


A "muda" é um dos destaques da novela Pantanal. E uma muda (e surda) é mulher do protagonista do filme O Dia em Que o Santo Pecou (1976), que tem argumento e roteiro de Benedito Ruy Barbosa, também assistente de direção (Claudio Cunha é o diretor). Outra "coincidência": é interpretada por Selma Egrei, a Mariana, avó de Jove na novela.

O filme é repleto de elementos do universo Benedito. O ambiente rural - aqui, comunidade litorânea e caiçaras, em vez dos peões da TV. A surda e muda personagem de Selma tem mais pontos em contato com Juma. Vive com João Baleia (Mauricio do Valle) em uma tapera bem semelhante a da novela. Não vira onça, se comunica por grunhidos e  tem fama de feiticeira pela crendice popular.

O santo do título é São Sebastião, o padroeiro da cidade, que é acusado por um crime, julgado e condenado. Na história, ecos da escravidão e elementos que lembram o Dias Gomes de O Pagador de Promessas.


O Dia em Que O Santo Pecou está inteiro no Youtube, a cópia é de baixa qualidade, mas vale vê-lo. E tem ótimas atuações de Selma Egrei ali pelos vinte e poucos anos, Maurício do Valle e Dionisio Azevedo (o delegado).


sábado, 11 de dezembro de 2021

Jorge Amado fala de Lina Wertmuller e Tieta, o filme que ela quase dirigiu

O encontro de Jorge Amado e Lina Wertmuller em 1981, foto da revista Manchete

Desde a morte de Lina Wertmuller, a imagem dela com Jorge Amado e Tieta, o filme dela abortado, não me sai da cabeça. Agora fui ao Navegação de Cabotagem, de Jorge Amado - "Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei". E Jorge escreve sobre no capítulo "Montreux 1988. A Máfia".

Aqui, um trecho:

"Lina Wertmuller chegou à Pedra do Sal pela mão de Bini*, Zélia e eu a recebemos de braços abertos. Ela trazia pronto o roteiro adaptado de meu romance, pela primeira vez Lina ia filmar história alheia, até então somente rodara argumento seu. Mostrou-me o manuscrito, colocou-o sobre a estante: "Quero que leias e me digas". Lina ia partir em viagem, o sertão da Bahia, o estado de Sergipe, as cidades de Aracaju e de Estância, à praia de Mangue Seco, ia ver os locais, tratar com a gente, "encher-se de Brasil", assim me disse e acreditei. Agradeci e recusei o convite para acompanhá-la no teco-teco alugado por Bini para sobrevoar campos, praias e povoados à baixa altura. Quanto ao roteiro, adiei a leitura para a volta de Lina, sei quanto é falsa e deformada a visão que os intelectuais europeus fazem do Brasil, conhecem de ouvir dizer, em geral de ouvir dizer ideológico, maniqueísta.

De retorno dias depois, ao entrar na sala, Lina me perguntou?
- Leste o cenário?

Disse que não o havia lido, estava onde ela o pusera, na estante. Respirou aliviada: "Ainda bem que não o leste, não tem o que se aproveite, o Brasil não é nada do que escrevi". Nada do que ela havia ouvido e imaginado, do que pusera em sua história, era diferente; por vezes o oposto. Ali mesmo rasgou as páginas do roteiro: "Vou escrever outro, agora sei, irás gostar", me disse. Assim aconteceu, o novo cenário recriava o Brasil com os olhos e o talento de Lina. Pena a falência do Banco Ambrosiano, liquidou o projeto às Vésperas de se iniciarem as filmagens de Tieta."

*Alfredo Bini, "meu velho cúmplice de cinema e farsa"


segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Um garoto visita Clarice Lispector em Anos de Chumbo

Há um conto, o sexto dos oito de Anos de Chumbo, chamado "Para Clarice Lispector, com Candura" - com candura, palavra linda - e nele o protagonista é um poeta, doido pela escritora, que deixa seus manuscritos na portaria dela e depois é recebido. É Chico Buarque contando sua visita a Clarice quando foi entrevistado por ela? É e não é, é também, é literatura. O poeta da ficção é universitário, tem 19 anos, Chico tinha 24, já era famoso (e Clarice tinha 47 anos). O personagem é universitário, filho de uma pintora e professora de artes (Maria Jansen) que dá lições pra Clarice, o Chico de então estudava teoria musical com Vilma Graça, conta Clarice no abre da entrevista. 

Não quero adiantar a trama, bem inventiva, e que chega até os dias de hoje. O que interessa aqui é a entrevista de Clarice com Chico Buarque, publicada na Manchete em 14 de setembro de 1968. Já saiu em livros, mas nunca vi com a reprodução da página e isso de ver como saiu, pra mim, é fundamental. E tem fotografia do Chico de então. 

 Ah, é de quando Clarice escrevia Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, o livro que começa com vírgula e acaba com dois pontos e é praticamente personagem do conto - e uma das perguntas que Chico responde também: "O que é amor?" 

Um trechinho da introdução de Clarice na entrevista: "Ele não é de modo algum um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho, pensativo e belo e sempre jovem que se chamasse Garoto, Francisco Buarque de Holanda seria da raça montanhesa dos garotos"

domingo, 31 de outubro de 2021

Uma canção do Chico para cada conto do livro de Chico

O plano era ler um por dia pra durarem mais os oito contos de Anos de Chumbo, o livro de Chico Buarque. Acabei lendo todos em umas três deitadas, E enquanto lia pensava em uma música de Chico para cada conto. É mais por sensações do que pelas histórias neles (às vezes também pelas histórias). Eis a lista.

1. Meu Tio - O Casamento dos Pequenos Burgueses

2. O Passaporte - Cantando no Toró (pelo "grande artista", quem lê entende)

3. Cida - Minha História

4. Os Primos de Campos - Maninha

5. Copacabana - Anos Dourados

6. Para Clarice Lispector, com Candura - Ludo Real

7. O Sítio - Bancarrota Blues

8. Anos de Chumbo - Hino de Duran


segunda-feira, 3 de maio de 2021

Clementina por Hermínio: Quase uma biografia

 

                                                                MPB

Fotos: Frederico Mendes, revista Cruzeiro, 1971

Logo após a morte de Clementina de Jesus, em 19 de julho de 1987, Hermínio Bello de Carvalho distribuiu um manifesto pra imprensa. Aqui, como foi publicado na revista Amiga (e com chamada de capa: "O desabafo de um poeta na morte de Clementina de Jesus) no começo de agosto daquele ano. Hermínio fala da desconsideração com que ela foi tratada no fim da vida por rádios e gravadoras. O texto apareceu dia desses e vale como uma biografia de Clementina de Jesus. Abaixo:

      

Morte de Clementina de Jesus provoca o desabafo de seu descobridor

Por Hermínio Bello de Carvalho


"Nega velha não é palhaça não, meu filho" O desabafo pelo telefone foi um soco no estômago. O que, afinal, teria magoado assim desse jeito uma pessoa que desconhecia ira, mágoa, inveja? Sem atinar com a causa, insisti muito e só aí ela me contou que a chamaram para gravar um novo disco. Durante três meses, apoiada numa bengala e sofrendo as consequências de uma trombose que a fazia arrastar-se com sacrifício pela tão decantada vida de artista, lá ia Mãe Quelé cumprir uma perigrinação inútil para saber quando sairia a gravação que ela não pedira para fazer. Que voltasse "na semana que vem", e toda semana ela voltava e recebia a mesma hipócrita recomendação. "Eu não pedi para fazer disco nenhum, meu filho. Por que é que eles estão brincando assim com a nega véia?" A resposta que tinha engatilhada na ponta da língua era por demais cruel, e não seria eu que iria amargurar ainda mais aquela negra de alma negra, aquele ser em tudo semelhante a um baobá, árvore africana de largo tronco e cuja folhagem rendilha sombras estranhas, expurgatórias talvez do banzo que sofrem os negros, banzo que há algum tempo eu vi espelhado nos olhos da grande Mãe Brasileira, quando fui visitá-la na companhia de nosso amigo, o fotógrafo Walter Firmo. Não conhecia a casa onde agora morava, muito diferente daquela da rua Itaú onde vivia com Albino Pé Grande: um quartinho que se ligava a uma sala estreita semigeminada a alguma coisa que se assemelhava a um banheiro-cozinha. A de hoje é fruto da solidariedade de alguns artistas plásticos (Cildo Meireles, Ana Letícia, Henfil, Glauco Rodrigues, Nássara, Serpa Coutinho, Ziraldo, Chico Caruso, Urian, Caymmi, Germano Blum e tantos outros que agora não me ocorrem, que, convidados por mim, fizeram uma série de retratos e cartuns de Mãe Quelé. Era 1980, e ela estava comemorando presumíveis 80 anos - mais ainda sem um teto que fosse seu.Levei a ideia ao Banerj: que comprasse a edição de um álbum editado pela Funarte e comprasse diretamente um imóvel em nome da Casa dos Artistas (nada mais justo) em usufruto de Clementina. O que foi feito.

A página da Amiga
Volta e meia amigos meus vinham me revelar o que há muito já sabia. A preço de banana, vendiam os shows de Clementina e a faziam rodar pelas madrugadas de São Paulo, onde se apresentava nos lugares mais mulambentos. E não raras vezes saía do Rio de ônibus, porque as leis selvagens do mercado são insensíveis quando se deparam com uma presa fácil e generosa igual a Quelé. Profissional, jamais alegou cansaço para fazer seu trabalho.


Aos seus ganhos agregava uma pensão magérrima do INPS, obtida por outro filho querido que não me autoriza a divulgar seu nome, guardado com muito carinho na gratidão de Clementina. Ele ganhou um festival com Paulinho da Viola e Elton Medeiros e reverteu os dois prêmios no pagamento de contribuições que permitiu a Mãe Quelé usufruir de uma aposentadoria que, embora magra e incompatível com sua importância, para alguma coisa lhe servia.

Mais recentemente, fui procurado pelo Marcus Villaça, presidente da LBA. A exemplo do que a instituição fizera com Henriete Morineau, entendia que Clementina era merecedora de igual apoio. Apenas ressaltei: que essa ajuda financeira ensejasse também um trabalho cultural. Sugeri que uma equipe de jovens pesquisadores fosse contratada para levantar a incompleta biografia de Clementina. Tive o cuidado, tão logo a conheci, de gravar seu depoimento, levantar de forma ametodológica (já que não sou um pesquisador) um pouco de sua grande vida. Mas era um trabalho que exigia um fôlego que a mim faltava. Um posterior depoimento ao Museu da Imagem e do Som complementou em parte o trabalho que fiz. Mas se fazia necessário levar Quelé até Valença, resgatar sua história, saber sua verdadeira idade, fazer uma pesquisa de campo detalhada. Esse trabalho, e Villaça assinou convênio com a Funarte, ganharia seu natural escoamento: um livro de cunho didático-cultural que a LBA editaria, para ensinar o Brasil aos brasileiros, como sempre recomendou Mario de Andrade.

João da Baiana, Pixinguinha, Donga e Clementina de Jesus

O acervo discográfico de Clementina é pequeno diante do seu universo, que é absolutamente incomensurável. Jongos, corimas, lundus, cantos de reisado e de folias, batucadas, partido-alto, rezas - tudo que aprendera com a mãe, que por sua vez herdara cantorias que vinham passando de geração em geração, o que me permitiu recompor uma acervo que fatalmente se perderia se parte dele não tivesse sido registrada fonograficamente. A Miton Miranda, ex-diretor da Odeon, deve-se o convite para registro dos LPs do Rosa de Ouro (1965), do primeiro LP individual de Clementina (também editado na França pela Pathé Marconi) e dos outros que produzi: o Fala Mangueira, ela e Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça e Odete Amaral; o Gente da Antiga, Quelé ao lado de Pixinguinha e João da Baiana; o Mudando de Conversa, gravado ao vivo com Ciro Monteiro e Nora Ney, e alguns mais que deveriam estar em catálogo. Participações especiais fez inúmeras em discos de outros artistas, como Milton Nascimento. Existe ainda um LP gravado para o Museu da Imagem e do Som de grande valor histórico. A má qualidade técnica do disco poderia, agora, ser atenuada pelos modernos sistemas da indústria fonográfica - essa que tão prosaica quanto descriteriosamente utiliza o slogan "disco é cultura". É uma impostura que dá margem à próspera fabricação de mitos descartáveis, ensejando a boa parte das gravadoras nacionais e multinacionais desovarem um lixo que em tudo desserve a nossa cultura, desamparada também por um Código de Telecomunicações que beneficia o culto ao inútil e desampara uma produção cultural ainda perseguida por artistas dignos que não se vergaram às conveniências mercadológicas de gravadoras que, como relatei no início deste artigo, humilharam Clementina no final de sua vida. É claro que toda essa impostura é mascarada quando a desgraça cai sobre um mito igual a Quelé ou tantos outros artistas que recentemente abasteceram o noticiário da imprensa. Entidades pseudamente representantes dos artistas logo se apressam a custear funerais, enviar coroas e até eventualmente pagar custos hospitalares, se a contrapartida promocional for interessante.

Dessa novela já sei o enredo. Lembro aos desmemoriados que Pixinguinha morreu na pobreza, com um baú entulhado de obras geniais condenadas ao ineditismo. Em seus últimos dez anos de vida só entrou nos estúdios graças a essa obsessão que até hoje me acompanha e a doce cumplicidade que felizmente ainda encontrei em pessoas sensíveis à genialidade do Santo. Meu trabalho na área cultural não é mais amplo exatamente por força de um sistema mafioso que trata o disco didático-cultural com absoluto desprezo, obstruindo quase todos os caminhos alternativos que tento percorrer. A própria televisão que faço já esteve sob patrulhamento estético, claro sinônimo de censura. Clementina é um exemplo vivo dessa ótica vesga e preconceituosa, que a tratava apenas como a preta velha alforriada pelos brancos bondosos que a encarceram numa senzala menos desconfortável. Não contarei aqui os absurdos que ouvi de pessoas incapacitadas até para a guarda de uma mictório público, mas que militam na área cultural em postos graduados.

Tudo que teria a dizer sobre Clementina de Jesus já despejei no recital que em 7/dez/64 a revelou para o público no show Rosa de Ouro, que em 1965 a consagrou, e nos discos que para ela produzi. Resumindo: ela é meu melhor poema, meu melhor livro, minha melhor letra de música. Tudo que fiz na vida tem significado inferior a sua descoberta. A milionésima parte que sempre desejei ser de Mario de Andrade acho que consegui no dia em que a conheci na Taberna da Glória, em 1963.

Clementina de Jesus é símbolo dessa cultura multifacetada em etnias e credos, baobá que a todos nos protege com a estranha divindade que a fez resistir ao processo liquidificador que insiste em atomizar figuras que, iguais a ela, nos ensinaram o significado de, além da pátria, sermos sobretudo uma nação.

Acho que o reconhecimento dos seus méritos por toda comunidade artística responsável do Brasil é também um atestado mais do que eloquente de sua arte transcendental. Para mim ela se iguala em importância a Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Mario de Andrade, Portinari. O crítico Ary Vasconcellos tem sobre ela um pensamento que reproduzo, e que me parece simplesmente definitivo:

"A descoberta de Clementina de Jesus teve para a música brasileira uma importância que presumo corresponder, na antropologia, à do achado de um elo perdido. Estávamos em meados da década de sessenta, já bem distante de nossas raízes africanas. A escola de canto que prevalecia era a europeia, principalmente a italiana: nossos cantores e cantoras apresentavam-se com a voz polida, seja por estudos técnicos, que os transformavam em autênticos tenores (líricos ou dramáticos), barítonos, sopranos, etc..., seja por uma colocação mais espontânea, mas sempre refinada, civilizada. Predominava sempre a voz, senão forte e imponente, pelo menos bonita, isto

Revista Amiga, 05 de agosto de 1987

 


Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Ga...